Legislação
O Guarda-Chuva Jurídico da Proteção aos Animais no Brasil
A discussão sobre bem-estar e proteção animal (direito animal) no Brasil hoje está se tornando cada vez mais importante. O número de pessoas engajadas no tema tem crescido muito nos últimos anos, sejam eles pesquisadores, consumidores, produtores rurais, defensores de direitos animais, jornalistas, legisladores, juízes, policiais ou estudantes. Esse interesse levou a um maior número de profissionais de diversas áreas de atuação especializados em direito animal, e a uma evolução da ciência por trás dos critérios e parâmetros utilizados para elaborar leis voltadas a proteger animais sejam eles silvestres nativos ou exóticos, de companhia, de produção ou aqueles usados em experimentos laboratoriais.
Para entender o direito animal brasileiro é necessário classificar o status jurídico dos animais no direito constitucional, civil, penal e ambiental do país, que vão compôr o guarda-chuva jurídico da proteção animal brasileira. Esta proteção já começa à nível constitucional com o art. 225 § 1º inciso VII da Constituição Federal Brasileira ou CF, que prevê a vedação à crueldade contra animais. Entretanto, os animais no Brasil são bens móveis ou semoventes de acordo com o art. 82 do Código Civil ou CC (Lei 10.406/2002), o que os torna passivos à comercialização. Isto significa que como qualquer “produto”, aplicam-se as mesmas garantias ao comprador final como definido pelo art. 2º do Código de Defesa do Consumidor ou CDC (Lei 8.078/1990).
Ainda que a CF de 1988 seja de suma importância para assegurar a proteção de toda a fauna em território nacional, o principal dispositivo legal que protege animais contra maus-tratos e crueldade no Brasil hoje é a Lei dos Crimes Ambientais ou LCA (9.605/1998), pois preconiza em seu art. 32 cárcere de 3 meses a 1 ano e multa. Em 2020 foi aprovado o Projeto de Lei (PL) 1.095/2019 que deu origem à Lei 14.064/2020, alterando o art. 32 da LCA para aumentar as penas cominadas ao crime de maus-tratos animais quando se tratar de cão ou gato, com reclusão de 2 a 5 anos e multa. As multas a serem aplicadas variam de R$ 500,00 a R$ 3.000,00 por indivíduo, como consta no art. 29 do Decreto 6.514/2008 sobre infrações e sanções administrativas ao meio ambiente.
O fato do direito ambiental no Brasil ter um papel central na proteção animal é a maior diferença em relação às normas dessa natureza de outros países. Como mencionado acima, a LCA de 1998 segue como a principal proteção jurídica à toda fauna brasileira, não limitada somente aos animais silvestres como nas normas ambientais de outras nações.
Na esfera do direito penal, delitos contra a fauna são normalmente definidos como contravenções penais, uma forma de menor gravidade criminal na ausência de fatores agravantes (violência ou ameaça à pessoa, reincidência, culpabilidade, antecedentes, conduta social e até mesmo a personalidade do condenado). A punição para crueldade animal pelo art. 64 da Lei das Contravenções Penais ou LCP (Decreto-Lei 3.688/1941) é prisão simples de 10 dias a 1 mês, ou multa de 100.000 a 500.000 réis (a ser covertida em reais).
Vale lembrar que o art. 44 do Código Penal ou CP (Decreto-Lei 2.848/1941) e o art. 76 da Lei 9.099/1997 sobre Juizados Cíveis e Criminais, convertem as penas privativas de liberdade (cárcere) em restritivas de direitos (pecuniárias), quando a reclusão não for superior a 4 anos e as circunstâncias forem atenuantes. É por este motivo que, no Brasil, a sentença de prisão prevista no art. 64 da LCP e no art. 32 da LCA é, por via-de-regra, convertida em multa.
Tendo em mente todas as esferas jurídicas supracitadas, é preciso visualizar a estrutura de um guarda-chuva, como ilustrado na figura 1. O ferrule (ponteira superior) representa a proteção constitucional acima de qualquer outra, com a CF como lei maior do país. A haste (eixo principal) leva a mola central, para destacar o papel central do direito ambiental. As costelas da esquerda e direita levam aos rebites laterais nas pontas, que identificam as garantias civís e penais, respectivamente.
O guarda-chuva, um objeto usado contra sol e chuvas desde os tempos da Mesopotâmia há aproximadamente 3400 anos, simboliza a proteção e resume didaticamente o status jurídico dos animais no Brasil. Porém não basta somente detalhar a situação atual, é necessário estabelecer medidas para melhorá-la. Isto só ocorrerá quando os déficits do direito animal brasileiro forem identificados e as demandas detectadas atendidas.
A primeira e mais importante questão é a urgência de definir as diversas formas de maus-tratos animais em lei federal, para que as penas descritas possam ser impostas sem margem para dúvidas ou interpretação errônea desfavorável. A norma brasileira que melhor define todas as formas de abusos animais é a Resolução do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) 1.236/2018 que, no entanto, somente se aplica a profissionais sob a autarquia dessa instituição (veterinários e zootecnistas). Seu entendimento não pode ser cobrado de leigos. Outro passo importante seria uma punição reclusiva mínima superior a 4 anos, a fim de evitar a conversão pecuniária automática.
Os direitos animal e ambiental podem se complementar especialmente no que diz respeito aos animais silvestres, porém o meio ambiente como alvo principal da LCA desvia o foco da fauna. Uma legislação federal, especificamente redigida para proteger o bem-estar dos animais, é um objetivo fundamental para o futuro do direito animal brasileiro e já existem propostas muito interessantes. Caso sancionado, o PL 215/2007 instituiria o Código Federal de Bem-Estar Animal no Brasil, uma detalhada norma jurídica que se aproxima muito dos modelos europeus análogos.
No âmbito do direito civil, se faz relevante o reconhecimento da senciência animal no CC, através da alteração do art. 82 ou da atribuição de um novo artigo direcionado exclusivamente a animais, como o art. 2º da Resolução CFMV 879/2008: “…os animais são seres sencientes, experimentam dor, prazer, felicidade, medo, frustração e ansiedade”. Como anteriormente abordado, as resoluções do CFMV se restringem aos profissionais inscritos no conselho, ou seja, o último artigo mencionado não constitui apreciação legal a animais como sencientes.
Finalmente e não menos importante, é dever e responsabilidade de cada membro da sociedade como cidadão idôneo denunciar toda situação que caracterize crueldade contra qualquer espécie animal, sejam estes “silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” (LCA art. 32).
Disque Denúncia: 181
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Stefan Timm
Graduado em medicina veterinária pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutorado em direito animal pela Universidade de Medicina Veterinária de Hannover/Alemanha (Stiftung Tierärztliche Hochschule Hannover – TiHo). Autor do Compendium Animalis: Coletânea de Leis e Normas de Proteção e Bem-Estar Animal no Brasil.
“A exercer a profissão com o máximo de zelo e ao melhor de minha capacidade, aprimorando continuamente meus conhecimentos para usar o melhor do progresso científico em benefício dos animais” – Código de Ética do Médico Veterinário
Legislação
O Guarda-Chuva Jurídico da Proteção aos Animais no Brasil
A discussão sobre bem-estar e proteção animal (direito animal) no Brasil hoje está se tornando cada vez mais importante. O número de pessoas engajadas no tema tem crescido muito nos últimos anos, sejam eles pesquisadores, consumidores, produtores rurais, defensores de direitos animais, jornalistas, legisladores, juízes, policiais ou estudantes. Esse interesse levou a um maior número de profissionais de diversas áreas de atuação especializados em direito animal, e a uma evolução da ciência por trás dos critérios e parâmetros utilizados para elaborar leis voltadas a proteger animais sejam eles silvestres nativos ou exóticos, de companhia, de produção ou aqueles usados em experimentos laboratoriais.
Para entender o direito animal brasileiro é necessário classificar o status jurídico dos animais no direito constitucional, civil, penal e ambiental do país, que vão compôr o guarda-chuva jurídico da proteção animal brasileira. Esta proteção já começa à nível constitucional com o art. 225 § 1º inciso VII da Constituição Federal Brasileira ou CF, que prevê a vedação à crueldade contra animais. Entretanto, os animais no Brasil são bens móveis ou semoventes de acordo com o art. 82 do Código Civil ou CC (Lei 10.406/2002), o que os torna passivos à comercialização. Isto significa que como qualquer “produto”, aplicam-se as mesmas garantias ao comprador final como definido pelo art. 2º do Código de Defesa do Consumidor ou CDC (Lei 8.078/1990).
Ainda que a CF de 1988 seja de suma importância para assegurar a proteção de toda a fauna em território nacional, o principal dispositivo legal que protege animais contra maus-tratos e crueldade no Brasil hoje é a Lei dos Crimes Ambientais ou LCA (9.605/1998), pois preconiza em seu art. 32 cárcere de 3 meses a 1 ano e multa. Em 2020 foi aprovado o Projeto de Lei (PL) 1.095/2019 que deu origem à Lei 14.064/2020, alterando o art. 32 da LCA para aumentar as penas cominadas ao crime de maus-tratos animais quando se tratar de cão ou gato, com reclusão de 2 a 5 anos e multa. As multas a serem aplicadas variam de R$ 500,00 a R$ 3.000,00 por indivíduo, como consta no art. 29 do Decreto 6.514/2008 sobre infrações e sanções administrativas ao meio ambiente.
O fato do direito ambiental no Brasil ter um papel central na proteção animal é a maior diferença em relação às normas dessa natureza de outros países. Como mencionado acima, a LCA de 1998 segue como a principal proteção jurídica à toda fauna brasileira, não limitada somente aos animais silvestres como nas normas ambientais de outras nações.
Na esfera do direito penal, delitos contra a fauna são normalmente definidos como contravenções penais, uma forma de menor gravidade criminal na ausência de fatores agravantes (violência ou ameaça à pessoa, reincidência, culpabilidade, antecedentes, conduta social e até mesmo a personalidade do condenado). A punição para crueldade animal pelo art. 64 da Lei das Contravenções Penais ou LCP (Decreto-Lei 3.688/1941) é prisão simples de 10 dias a 1 mês, ou multa de 100.000 a 500.000 réis (a ser covertida em reais).
Vale lembrar que o art. 44 do Código Penal ou CP (Decreto-Lei 2.848/1941) e o art. 76 da Lei 9.099/1997 sobre Juizados Cíveis e Criminais, convertem as penas privativas de liberdade (cárcere) em restritivas de direitos (pecuniárias), quando a reclusão não for superior a 4 anos e as circunstâncias forem atenuantes. É por este motivo que, no Brasil, a sentença de prisão prevista no art. 64 da LCP e no art. 32 da LCA é, por via-de-regra, convertida em multa.
Tendo em mente todas as esferas jurídicas supracitadas, é preciso visualizar a estrutura de um guarda-chuva, como ilustrado na figura 1. O ferrule (ponteira superior) representa a proteção constitucional acima de qualquer outra, com a CF como lei maior do país. A haste (eixo principal) leva a mola central, para destacar o papel central do direito ambiental. As costelas da esquerda e direita levam aos rebites laterais nas pontas, que identificam as garantias civís e penais, respectivamente.
O guarda-chuva, um objeto usado contra sol e chuvas desde os tempos da Mesopotâmia há aproximadamente 3400 anos, simboliza a proteção e resume didaticamente o status jurídico dos animais no Brasil. Porém não basta somente detalhar a situação atual, é necessário estabelecer medidas para melhorá-la. Isto só ocorrerá quando os déficits do direito animal brasileiro forem identificados e as demandas detectadas atendidas.
A primeira e mais importante questão é a urgência de definir as diversas formas de maus-tratos animais em lei federal, para que as penas descritas possam ser impostas sem margem para dúvidas ou interpretação errônea desfavorável. A norma brasileira que melhor define todas as formas de abusos animais é a Resolução do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) 1.236/2018 que, no entanto, somente se aplica a profissionais sob a autarquia dessa instituição (veterinários e zootecnistas). Seu entendimento não pode ser cobrado de leigos. Outro passo importante seria uma punição reclusiva mínima superior a 4 anos, a fim de evitar a conversão pecuniária automática.
Os direitos animal e ambiental podem se complementar especialmente no que diz respeito aos animais silvestres, porém o meio ambiente como alvo principal da LCA desvia o foco da fauna. Uma legislação federal, especificamente redigida para proteger o bem-estar dos animais, é um objetivo fundamental para o futuro do direito animal brasileiro e já existem propostas muito interessantes. Caso sancionado, o PL 215/2007 instituiria o Código Federal de Bem-Estar Animal no Brasil, uma detalhada norma jurídica que se aproxima muito dos modelos europeus análogos.
No âmbito do direito civil, se faz relevante o reconhecimento da senciência animal no CC, através da alteração do art. 82 ou da atribuição de um novo artigo direcionado exclusivamente a animais, como o art. 2º da Resolução CFMV 879/2008: “…os animais são seres sencientes, experimentam dor, prazer, felicidade, medo, frustração e ansiedade”. Como anteriormente abordado, as resoluções do CFMV se restringem aos profissionais inscritos no conselho, ou seja, o último artigo mencionado não constitui apreciação legal a animais como sencientes.
Finalmente e não menos importante, é dever e responsabilidade de cada membro da sociedade como cidadão idôneo denunciar toda situação que caracterize crueldade contra qualquer espécie animal, sejam estes “silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos” (LCA art. 32).
Disque Denúncia: 181
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Stefan Timm
Graduado em medicina veterinária pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutorado em direito animal pela Universidade de Medicina Veterinária de Hannover/Alemanha (Stiftung Tierärztliche Hochschule Hannover – TiHo). Autor do Compendium Animalis: Coletânea de Leis e Normas de Proteção e Bem-Estar Animal no Brasil.
“A exercer a profissão com o máximo de zelo e ao melhor de minha capacidade, aprimorando continuamente meus conhecimentos para usar o melhor do progresso científico em benefício dos animais” – Código de Ética do Médico Veterinário